👨🏽‍🚀 wil fernandes guru de nada • ele/dele
contos

🐓 O hábito não faz o monge

Já era perto do fim da missa. "O Senhor Jesus Cristo, dissestes aos vossos apóstolos: eu vos deixo a paz", o padre Rafael sentiu que era um bom momento para uma pausa dramática. Mirou por cima de seus oclinhos redondos, desproporcionalmente pequenos dado seu crânio avantajado, o pouco mais de duas dúzias de fiéis. O silêncio correu gelado pelas fileiras. Uma senhora, sentada logo nos assentos mais próximos ao altar, levantou os braços aos céus, deleitando-se com a paz proporcionada pela potente liturgia.

Rafael ergueu a cabeça e puxou bastante ar para os pulmões a fim de continuar de forma ainda mais vigorosa. "Eu vos dou a minha paz! Não olheis os nossos pecad", o pároco subitamente se perdeu do texto. Não, não por ser um padre ruim, seria capaz de repetir aquela cerimônia de trás para a frente. É que vira o próprio pecado adentrando de forma sorrateira à capela e ajeitando-se nas cadeiras ao fundo, tentando não atrair muita atenção. Era Carlos. O qual o sacerdote não tinha o menor prazer em ver aquela noite. Ou tinha? A culpa, então, entranhou-se por seu robe, em um arrepio que escalou a parte posterior de suas coxas em um piscar. Engoliu seco e apressou-se para concluir a missa, dirigindo-se, com esforço, ao sexteto de velhotas mais próximas ao púlpito, numa tentativa infrutífera de ignorar a presença do homem.

Tão logo o rebanho saíra, o reverendo encaminhou-se em direção à sacristia. Os passos firmes e o cenho franzido berravam que não estava para brincadeira. Sem sequer olhar para o banco em que Carlos estava sentado, emitiu uma ordem firme: "Venha". O rapaz ergueu os braços fortes, esfregou as mãos e correu ao encontro do vigário. Entrou no recinto soltando um gracejo. "Sua benção, Dom Rafael". "Não fode, Carlos", esbravejou de pronto, o padre. "Já disse que você não era mais bem-vindo aqui! Eu não comungo mais dessa vida, nós combinamos que não nos encontraríamos mais, por favor vá embora".

Rafael começou a despir-se dos seus paramentos. Carlos deu alguns passos em sua direção, abriu o zíper da jaqueta, dente por dente, e enfiou a mão por dentro da calça jeans. O padre congelou enquanto pendurava a manta no cabide. "Pare, eu já disse que é para você ir e não me importunar mais". O outro não deu ouvidos e sacou o pacote para fora, segurando-o firme com as duas mãos: "Pega, pode pegar". O clérigo salivou. Se ele encostasse naquilo, voltaria a viver em pecado. Não podia ter uma recaída agora, depois de ter se confessado ao bispo e ter ganho uma segunda chance. Por outro lado, regozijava-se daquilo. Seus braços ameaçaram ir em direção à oferta de Carlos, mas logo interrompeu o movimento, e recompôs-se decidido: "Não, eu não quero. Dê para outro." Estendeu a mão, apontando para a porta da sacristia. "Você conhece a saída".

"Bom, não vou insistir, então..." O rapaz deu de ombros. "Eu só vim porque no seu último jogo você acertou a milhar seca, imagina quantas coisas dá pra fazer pela paróquia com esse dinheiro...", soprou baixinho, guardando o pacote com o gordo prêmio do jogo do bicho na calça e caminhando para a saída.

"Carlos, espere!"