👨🏽‍🚀 wil fernandes guru de nada • ele/dele
contos

🥛 Eu só queria vender leite, cara

Em meio a bocejos e remelas, Fátima estava terminando de coar o café quando foi interrompida pela buzina da bicicleta do Jonas, vendedor de leite do bairro. Largou a chaleira de água fervendo de qualquer jeito no fogão e disparou até o quintal, em uma corridinha desengonçada que suas pernas roliças e cobertas de varizes lhe permitiam. Quase no portão, ela parou num supetão e sacudiu a cabeça: esquecera a carteira. "Tô indo, Jonas. Vou pegar o dinheiro!", berrou a velha por detrás da abertura de ferro. De bate e pronto o leiteiro devolveu: "Sem pressa, Dona Fátima".

A mulher vasculhou cada centímetro da sala e mesmo assim não achou a bendita carteira. Bufando mais que a chaleira que largara no fogão (exatamente o fôlego esperado de alguém com trinta e dois anos de Marlboro vermelho nas costas) a senhora desistiu de sua busca e optou por pegar o dinheiro na mala de trabalho do marido mesmo. Abriu o zíper interno, meteu a maõzona enrugada e sacou o pequeno maço de notas. No processo, o atrito trouxe junto uma foto revelada, meio amarelada pelo tempo. Em um relance, viu o casal de noivos selando o matrimônio em um beijo. Fátima esboçou um sorriso, decidindo se entregar rapidinho à distração momentânea. Girou a mão segurando a fotografia para ver o verso e lá estava escrito a caneta "Te amo, Neide. Feliz bodas de prata".

"Neide?", soltou um sussurro inaudível enquanto virava a fotografia violentamente. O corpo já idoso de Fátima quase não deu conta da onda penosa de sensações que seu cérebro descarregou ao perceber que não era uma versão mais nova dela ali e sim uma "vagabunda qualquer fantasiada de noiva beijando o filho da puta do Rubens", conforme interpretado. Pisando duro, a velha andou até a cozinha, passou a mão na ripa de eucalipto e foi direto até o quarto do casal, onde o esposo roncava gostoso.

"Vai pra casa da Neide, pilantra!", vociferou a plenos pulmões enquanto descia a madeira no peito do pobre coitado dormindo. O velho rolou da cama pro chão, esbaforido, olhando em todas as direções sem entender bulhufas do que tava acontecendo. "Corre, marginal", continuou Dona Fátima enquanto descia mais uma madeirada no rosto de Rubens, que por pouco não teve tempo de levantar o braço. "Vai lá enfiar esse teu pau murcho naquela vagabunda da sua outra esposa", e lá foi mais um golpe implacável, dessa vez nas pernas de sua vítima. "Que que você tá falando, muié!", murmurou com o pouco ar que lhe sobrara nos pulmões enquanto se esforçava em desviar da fúria de sua cônjuge, sem muito êxito.

"É sonso agora, seu estrume?", seguido por mais uma pancada. Atirou então a foto sobre o marido que mais parecia um animal indefeso. Ele agarrou a prova de seu suposto crime intrigadíssimo. Seu rosto foi se derretendo em ainda mais confusão. "Por que você tá me batendo enquanto segura uma foto do casamento do Cléber com a Neide?", lançou de volta à sua agressora enquanto devolvia a foto com o olhar cheio de súplica.

O leiteiro, tocado pelo barulho do encontro da madeira com a carne, berrou lá da rua "Dona Fátima, mais tarde eu volto!".