👨🏽‍🚀 wil fernandes guru de nada • ele/dele
contos

👺 Da tormenta do amanhecer

Curiosamente, não foi o despertador que o acordou. Não. Foi um violento raio de Sol que se embrenhou por uma fresta da janela e golpeou em cheio o rosto do jovem. Os músculos de sua face se contorceram feito membros do Circo de Soleil, enquanto levantava seus braços finos, numa tentativa frustrante de conter os socos de Apolo, deus do Sol, não o Creed (por sorte). Abriu os olhos vagarosamente, estranhando não ouvir o estardalhaço do celular em seus ouvidos. Começou a tatear o lado esquerdo da cama em busca de Sofia, mas só encontrou o vazio e o silêncio ensurdecedor. Tão logo sua mente entrou nos eixos, sentiu um aperto no peito, como se um demônio encarnado tivesse arrancado seu coração com as próprias garras, e se deu conta de que esse seria o novo normal. O amor escapou por entre seus dedos.

Levantou-se com esforço, já que a culpa pesava-lhe os ombros. Os passos até o banheiro foram arrastados, dado os grilhões de remorso amarrados em seus tornozelos. Ao fitar-se no espelho, ficou petrificado, tal qual visse no reflexo a própria Medusa. Um frio intenso e localizado escalou sua espinha, devolvendo-lhe o movimento e parte da capacidade de interpretar o que via. O moço não tinha mais seus ouvidos. Não como o Átila Iamarino que mesmo não dando pra ver, você sabe que estão lá. Não. O infeliz estava mouco e no lugar das belas orelhas, só sangue e quietude. Apertou os olhos com força descomunal, mas ao reabri-los a imagem horrenda continuava lá. "Meu Deus, o que está acontecendo? O que está acontecendo?", perguntava-se repetidamente, ansiando em seu âmago por respostas divinas.

"Sofia, me ajuda! Eu não escuto!", berrou ao vazio. Nada.

. . .

A manhã introduziu um dia bosta. O Sol mal conseguiu dar as caras, com a quantidade de nuvens que o cobria. O barulho digitalmente metálico do despertador encheu o quarto e o jovem se tremelicou todo na cama, devido à sensação de queda livre no despertar repentino. Respirou fundo, juntando as mãos em uma espécie de posição de reza, aliviado por ouvir o som do aparelho. "Raquel, eu estava tendo um sonho maluco...", começou compartilhando com sua amada, enquanto virava o corpo para o lado esquerdo da cama. De novo, a surpresa. Só encontrou o vazio.

Sem demora se deu conta de que a moça não estava mais lá. E nem voltará a estar. Percorreu os olhos aflitos pelo quarto, ansiando que não estivesse certo em seu achar. Mas a estranheza típica do déjà vu lhe envolveu. Disparou para o toalete e abriu o berreiro assim que se viu no espelho. Onde antes haviam seus olhos, estavam duas esferas pretas, abissais. Uma escuridão nunca experimentada antes, parecia que toda luz que tocasse suas superfícies oculares era absolutamente sugada pela dupla de abismos escavados em seu crânio. Escorria um sangue viscoso pelas maçãs de seu rosto, enquanto o cheiro de ferro maltratava suas narinas. "Eu ainda tô no sonho?! Mas eu acabei de acordar...", balbuciou o pobre coitado. Enquanto observava-se no reflexo, sua visão começou a sumir. Mas não estava só escurecendo. Começou a perceber que toda a informação visual à sua volta estava sendo sugada para o par de glóbulos macabros que ostentava em sua face. Socou o espelho, na esperança de fugir da loucura iminente.

"Raquel, me ajuda! Eu não enxergo!", implorou ao vazio. Nada.

. . .

O astro do dia sequer se esforçou em dar as caras, dessa vez. Pela janela do quarto, nada se via além de uma neblina densa. O moço, virado de barriga para cima, de repente despregou os olhos. Lá estava o seu ventilador de teto, girando como o esperado. Sentou-se do lado direito da cama, erguendo os braços na altura dos olhos a fim de dar uma boa espiada neles. Suspirou, de leve, ao perceber que enxergava seus membros com perfeição. "Só um pesadelo em camadas...", avaliou. "Bia que vai rir e me chamar de DiCaprio quando eu contar", concluiu para si mesmo. Esfregou as mãos com vontade, mas percebeu em um relance uma garrafa de vinho quebrada e sangue espalhado no chão. Um turbilhão de memórias invadiu sua consciência. O rapaz, estupefato, virou-se de forma brusca, levantando o cobertor do outro lado da cama. Em seu íntimo, sabia que não veria a mulher ali, mas a angústia não permitia que não conferisse.

"Beatriz, me ajuda!". Nenhum som foi emitido. "Beatriz, me ajuda! Eu não consigo falar!", tentou bradar de novo e nada, nem um sopro.

Esbaforido, levou as mãos à boca, mas não havia nada ali. Seu rosto magro estava plano, em uma junção pouco proporcional de nariz aquilino, couro liso e queixo proeminente. Tomado pela insanidade, pegou o pedaço de vidro da garrafa no chão e começou a rasgar os seus pulsos. Dos cortes saíram pequenas larvas, misturadas em um denso líquido negro. Aterrorizado, arremessou longe o instrumento, subindo ligeiro na cama, incrédulo com o que viu sair de si.

Seu corpo não parava de chacoalhar, dado o completo pavor. Com os punhos cerrados, fechou os olhos e caiu de joelhos na cama. Não conseguia entender o que se passava, e só queria o fim daquele pesadelo. "Deus, eu não sei o que está acontecendo...", rogou em uma oração silenciosa. "Mas eu Lhe suplico: me tira daqui. Tenha misericórdia, me deixe morrer!".

"Morrer, Dante? Mas você já está morto."