👨🏽‍🚀 wil fernandes guru de nada • ele/dele
contos

🍺 Copo sujo, só que limpo

"Sandrão, traz mais uma Original pra gente!", interrompeu o assunto da mesa o jovem Vinícius, que com uma mão tirava a garrafa da camisinha de isopor e com a outra acariciava as costas do garçom, deslizando os dedos perigosamente perto das nádegas do melhor atendente do Salada Record, decadário boteco copo sujo com preço de copo limpo no Centro de São Paulo. "Vini, você tem meia-hora pra tirar a mão daí", devolveu o assalariado em uma gostosa gargalhada, se deliciando da própria piada, e logo se atirou de volta à cozinha para atender o pedido. "Foi mal te cortar, Marina, cê ia começar a falar da sua teoria sobre a música da Baratinha, continua aí". Todos os rostos dos pequenos proleotários - como se auto-intitulavam - viraram ávidos em direção à moça.

"Não, cara... Não é nem teoria, é indignação mesmo!". Ela deu uma bela golada na cerveja, saboreando cada gota da atenção recebida dos colegas. "Como é que pode os pais deixarem os filhos no YouTube assistindo esse tipo de barbaridade da Galinha Pintadinha?!", seu timbre exagerado foi imediatamente interrompido por um delicioso soluço etílico. Troca de olhares confusos percorreram o círculo, mas foram sugados por Ricardo batendo na mesa. "Aqui tem denúncia!", bradou o ébrio. Todos riram. "Por que barbaridade, Marina?", indagou Júlia, incentivando a amiga a continuar. "Uai, é uma música que estimula a prática de bullying contra uma colega estudante socialmente desfavorecida!", a pretensa seriedade na voz da jovem provocou uma gaitada generalizada. "Vocês estão rindo?!" Marina ergueu o tom sobre os risos e continuou, declamando palavra por palavra da música: "'A barata diz que tem sete saias de filó, é mentira da barata, ela tem é uma só ha ha ha' olha essa letra, cara! Os filhas da puta estão rindo dela!". Vinícius, que bebericava de seu copo durante a fala da moça, explodiu. Tentou levar a mão para cobrir o rosto, não obtendo sucesso. Cerveja e catarro voaram das narinas do rapaz. "Eca", berrou Ricardo agarrando o máximo de guardanapos possíveis para se limpar em movimentos exagerados, se divertindo com toda a situação.

"Puta que me pariu, eles tão rindo por ela ser pobre?!", interpelou Júlia, batendo o copo, agora vazio, na mesa. "Não só isso... Eles tão rindo da barata mentir sobre ter!", respondeu Marina cerrando os lábios enquanto balançava afirmativamente a cabeça. "O ponto é que a barata se sente obrigada a mentir para ser aceita. Certeza que ela estudava em uma escola de burguês safado!", concluiu Ricardo, de peito estufado. Na mesa ao lado, um velhote ostentando um relógio estilo Fausto Silva lançou um olhar feroz para o fanfarrão barulhento. "Cadê a breja, Sandrão?", protestou Vinícius mostrando o copo vazio para um Sandrão apressado.

"Sabe, isso me lembra um dos maiores furos de Harry Potter", Júlia começou a mudar de assunto, tamborilando os dedos na mesa. "Lá vamos nós, Harry Potter e a Baratinha de Azkaban", saltou Vinícius sobre a fala dela, empurrando seus ombros para cima dos ombros da moça que, risonha, devolveu o gesto num movimento carregado de demasiado carinho. Marina e Ricardo se entreolharam furtivos, caçoando do flerte inegável dos dois colegas. "Que furo? Você não me venha criticar Harry Potter!", questionou Marina, apontando o indicador para o nariz da colega. "Cara, ano após ano, a porra de um chapéu, deliberadamente, decide agrupar os alunos mais filhos da puta na mesma casa, na Sonserina!", Júlia vociferou, dando um safanão no dedo inquisidor de sua amiga. "Não tem um pedagogo no filme dizendo 'Já avisei que vai dar merda isso'", continuou a moça, com a voz grossa, imitando o Capitão Nascimento. Enquanto ela gracejava, Sandrão chegou equilibrando um balde de cerveja e uma porção de pastéis, servindo o pessoal na mesa.

"O chapéu seletor não leu Paulo Freire, cara."

Saudades de um boteco, né meu filho?